Na minha infância e adolescência, sempre que passávamos férias na praia, tínhamos que ter cuidado com o que Mamãe chamava de “ladrão descuidista”. Era aquele ladrão que nem queria roubar nada. Mas, se você se descuidasse um minuto e deixasse alguma coisa dando bobeira, o cara ia lá e passava a mão. Levava mesmo, sem a menor cerimônia.
Como nossa casa tinha um muro relativamente baixo e sempre estendíamos as roupas e toalhas de praia na mureta do terraço, vez por outra um pivete inventava de pular o muro e levar o que conseguisse.
A inocência da criança também era explorada. Certa vez, meu irmão ainda meninote, estava na cozinha e chega um cara pelo muro lateral da casa pedindo um copo d’água. Meu irmão deu. Ele pediu outro. Meu irmão deu. Pediu outro e mais outro. Até que meu irmão finalmente trocou de braço. Ao invés de passar-lhe o copo com a mão direita, usou a mão esquerda. A mão do relógio. O sujeito nem pestanejou. Além de matar a sede, ainda deu o bote no braço do meu irmão, levando o seu relógio. (Espero que tenha sido preso pela polícia ao parar pra fazer xixi…)
Ainda criança, aquele conceito de “ladrão descuidista” me incomodava. Como pode-se viver num ambiente onde o povo muitas vezes nem planeja se aproveitar da situação, mas não hesita em tirar vantagem se tiver oportunidade? “A ocasião faz o ladrão”, dizia o sábio ditado. Sério? E a gente tem que se conformar com isso? A culpa era mesmo minha por ter estendido minha toalha molhada dentro da nossa propriedade, em plena luz do dia? Não conseguia assimilar o conceito de que a culpa era da vítima!
Os anos foram passando e terminamos nos mudando para o Canadá.
O choque entre a vida estressante nas grandes cidades brasileiras e a calmaria dos subúrbios canadenses é grande. Muitas vezes percebi que minhas visitas recém-chegadas do Brasil já iam tirando rapidamente o cinto de segurança enquanto eu calmamente estacionava o carro. Assim que o carro parava, já estavam com a porta destravada, prontos para correr e encontrar abrigo. E eu, demoradamente, retirando o meu cinto, fechando o carro com calma e andando tranquilamente.
Com a vida mais tranquila, a gente vai ficando mais descansado e termina relaxando demais. Começa a não se preocupar o tempo todo com a segurança e, mais cedo ou mais tarde, a gente termina baixando a guarda e vacilando. Mas aqui, esses vacilos que no Brasil seriam imperdoáveis aos olhos do “ladrão descuidista”, passaram em branco.
No primeiro deles, no início de 2003, com Guida no último mês da gravidez de Louisa, deixamos a porta da nossa casa aberta. Não, não estou falando de destrancada. Estou falando de deixar a porta totalmente aberta, escancarada. Estávamos morando por uma breve temporada num condomínio em Hull, na província de Quebec.
O condomínio tinha 9 unidades, todas com porta diretamente para a rua. Por algum motivo, não fechamos a porta direito. Nem eu fui checar antes de ir dormir, como a rotina da casa da praia me ensinara a fazer. Acordamos na manhã seguinte com um frio enlouquecedor dentro de casa. Era fevereiro e o inverno estava sendo bastante rigoroso.
Dentro do nosso quarto, debaixo das cobertas e com a porta fechada, não notamos tanto a temperatura baixa. Mas quando acordamos e abrimos a porta do quarto, notamos que a casa estava congelando. Assustado, pensei que o aquecedor havia quebrado. Demorou um pouco até que eu notasse que a porta da frente estava totalmente aberta.
A partir desse momento, o susto foi ainda maior. O meu foco passou mudou do aquecedor para o risco de alguém estar dentro da casa, ou de já ter ido embora levando alguma coisa de valor. Nem um nem outro. Tudo estava no seu devido lugar. Não havia ninguém escondido dentro de casa. Tudo sob controle.
A parte irônica dessa história é que, 10 anos depois, em outubro de 2013, numa viagem a Ottawa, voltamos ao condomínio para mostrar a Louisa a casa onde ela havia nascido. Paramos no estacionamento e começamos a tirar umas fotos das casas. A atual inquilina do nosso antigo apartamento não gostou. Abriu a porta, ficou olhando de longe, e quando fez menção de vir em direção ao nosso carro, demos partida e nos mandamos. Mal sabia ela que estava tão segura ali, que podia até dormir com a porta aberta!
Em um vacilo mais recente, foi a porta do carro que ficou aberta. E mais uma vez, não apenas destrancada. Completamente aberta. Guida e Louisa chegaram tarde naquela noite. Guida saiu pelo lado dela e Louisa, avoada, saiu do carro correndo e não bateu a porta. E assim o carro ficou a noite inteira.
No dia seguinte, um povo batendo na porta, tocando a campainha. Eu, como detesto abrir a porta sem estar esperando alguém, ignorei.
– Deve ser mais um vendedor – pensei.
Quando finalmente saí de casa, o vizinho veio falar comigo:
– Seu carro passou a noite com a porta aberta. Eu bati na sua porta para avisar, mas ninguém atendeu.
Agradeci a ele e mais uma vez entrei no modo desespero pra ver o que havia sido levado. Nada. Nadinha. Estava tudo no lugar. Tive sorte que nem um vento forte bateu pra levar os papéis e recibos que sempre povoam o interior do carro.
O interessante é que o vizinho também não fechou a porta do carro. Deve ter pensado: “se eles deixaram a porta aberta, quem sou eu pra fechar?”. Ou então ficou com medo de ter sua digitais na porta, no caso de alguma coisa estar faltando? Agora deixa pra lá, já faz tempo mesmo…
O interessante é que por duas vezes criamos oportunidades claras para o “ladrão descuidista”. Criamos a ocasião. Mas o ladrão não apareceu…
PEGADINHA DO DESCUIDISTA
Essa pegadinha mostra bem o problema dos descuidistas. Dá pra ver que alguns dos ladrões nem estavam ali para roubar, mas ao verem a bicicleta dando bobeira, não pensaram duas vezes. Pelo menos dessa vez, eles se deram mal…