Eu bem que tentei evitar comentar a situação política do Brasil. Aliás, por vários anos, acabei me afastando das notícias cotidianas do país. Não por desprezo ou por ingratidão, mas simplesmente porque as notícias começaram a não impactar o meu dia-a-dia e nem sempre tinha tempo para acompanhá-las. Passei um bom tempo (pelo menos alguns anos) sem nem saber o que estava acontecendo na política brasileira.
O governo do PSDB havia estabilizado a economia. O PT estava assumindo o poder, numa guinada histórica. A transição havia sido tranquila, os mercados haviam se acalmado. “A esperança venceu o medo”, bradavam os vencedores, referindo-se ao depoimento apocalíptico da atriz Regina Duarte sobre a iminente vitória do PT.
Ainda seguindo a linha “paz e amor”, o novo governo havia prometido manter a responsabilidade fiscal e estava cumprindo a sua promessa. Tinha uma relação cordial com as grandes economias mundiais (inclusive com os EUA) e ainda estava agindo coerentemente com o seu discurso de campanha. Melhor ainda: estava começando uma grande iniciativa de distribuição de renda para erradicar a miséria do país.
Que maravilha! Tudo fazia sentido! A alternância de poder tão salutar para a democracia estava a todo vapor, o novo governo estava mantendo a base do que havia dado certo e ainda expandindo a sua política para ajudar aos mais necessitados. Teria o Brasil finalmente encontrado a sua maturidade democrática?
Enfim, como estava tudo em ordem na terrinha, eu que não havia saído do Brasil nem por causa de PSDB nem por causa do PT, fui tocando minha vida por aqui. Totalmente despreocupado e alheio aos acontecimentos que se seguiram.
O gigante havia despertado! Aquele gigante pela própria natureza. O belo, forte, impávido colosso.
Até que ouvi falar de um tal de Mensalão.
Eu cresci ouvindo todo mundo dizer que a corrupção reinava no Brasil. Todo mundo sabia, só não tinha como provar. Que sempre sobrava para o mais fraco e os chefões saíam de fininho…
Fiquei impressionado com o envolvimento de pessoas de tão alto escalão do governo, mas ainda assim, tive a impressão que nada tinha mudado: o Marcos Valério pagou o pato com quase 40 anos em regime fechado, enquanto os Zés (o Genoíno e o Dirceu) pareciam ter sido poupados do pior, um com a sua pena perdoada (!) e o outro com a progressão para a prisão domiciliar.
Veio então a crise imobiliária americana e o país saiu-se relativamente ileso. Enquanto os EUA viam os preços dos seus imóveis despencar, seguidos de Inglaterra e boa parte da Europa, os BRICS continuavam a todo vapor. Enquanto as famílias de classe média americana e européia, atoladas em dívidas, não mais conseguiam contribuir para o aquecimento de suas respectivas economias, a camada emergente dos BRICS vivia o “sonho da classe média”, com um consumo recorde.
Essa classe emergente segurou a onda. O problema é que nem todos pagaram as suas contas. E assim, o índice de inadimplência começou a subir.
Ainda aproveitando os bons fluidos da economia, o presidente viria a indicar como sucessora sua gerenta competenta.
O povo comprou a ideia. Só que não era bem assim…
Os pilares da economia foram abandonados. O que era meta, não se cumpria. O que era teto, virava meta. E assim, a meta passou do teto. O dragão adormecido da inflação estava voltando a cuspir fogo.
A tempestade estava se armando…
A incompetência retumbante da representanta eleita ficou aparente. Desnorteada, fazia discursos estapafúrdios. Era um tal de cachorro atrás da criança, pasta de dente voltando pra dentro do dentifrício saudação à mandioca, vento estocado e uma coleção infindável de deslizes, gafes e asneiras inimagináveis.
Tudo o que é presidente sendo investigado: o do Senado, o da Câmara, ex-presidente da República…
De repente, as projeções da economia despencaram, serviços foram cortados e a corrupção e o “toma lá dá cá”, que sempre existiram, tomaram conta escancaradamente de todos os poderes da República. O governo mais preocupado em salvar a sua pele do que governar o país. Escaldado pelo TCU, pedindo favores ao STF e o país indo para o brejo. A oposição, ora interessada em salvar o presidente da Câmara, ora interessada em fritá-lo, dependendo da pauta do dia.
Deu a louca no gigante. Que pena. O caos mostrava que a desconfiança tinha fundamento.
Com o estouro do escândalo do Petrolão, as delações premiadas quebraram a sina dos operadores e laranjas sempre pagarem o pato. A bronca começou a incomodar o andar de cima. O pânico instalou-se de vez. Vimos diretores da Petrobrás se comprometendo a devolver uma quantidade absurda de dinheiro escondido no exterior, fechando delações premiadas para evitar passar décadas em regime fechado. Milhões e milhões de dólares devolvidos ao patrimônio público. Vimos os presidentes das maiores empreiteiras presos. Vimos um senador da república preso em flagrante! O cerco estava se fechando.
Deu a louca no gigante. Nunca antes na história deste país tais fatos haviam sido presenciados.
Pelo menos temos que admitir que o escândalo protagonizado pelo alto escalão do governo teve um tom profético.
Quem prometia prender os bandidos do colarinho branco nunca pensou que estaria vendo seus companheiros abarrotarem a carceragem da PF.
Depois de sua frase publicada na Folha de São Paulo na década de 80, onde dizia que “no Brasil, ladrão rico vira ministro”, o acuado e investigado suposto líder da quadrilha fez o que? Tentou virar ministro. Recebeu um “cartão de saída livre da prisão” diretamente da presidência da República, pra usar só se precisasse. Uma cartada tirada dos tabuleiros de Banco Imobiliário. Mas dessa vez, a justiça não permitiu. A imoral posse do ministro-chefe da casa desgovernada foi barrada.
Deu a louca no gigante. Ufa! Há esperança de que a Justiça controle o caos.
Se bem que, nesse caso, eu achei que a Justiça deu uma baita pisada na bola, divulgando áudios comprometedores dos envolvidos durante a investigação. Não sou jurista para discutir se a divulgação foi legal ou não, nem poderia jamais ignorar o conteúdo imoral e sujo dos áudios, mas que pareceu uma vingança barata do juiz, ah, isso pareceu…
Mas o capítulo mais triste ainda estava por vir: a novela mexicana do impeachment.
Que o governo era péssimo, a maioria da população já sabia. Aliás, já havia sido reeleito por uma margem muitíssimo apertada, com o partido banhado na lama da corrupção e a economia dando sinais de fraqueza. Desde o início, todos nós já sabíamos que seriam quatro anos muito turbulentos.
Mas ao contrário de Collor, que havia sido eleito por um partido nanico, “de direita” e sem militância, o governo tinha ao seu dispor uma militância obstinada e barulhenta. Os crimes de Collor também pareciam ser bem mais fáceis de entender do que as chamadas pedaladas fiscais. Se bem que Collor ganhou uma Elba na época de PC Farias e andava de Porsche depois dos esquemas recentes.
Para esses, que inundaram as ruas na década de 90 e pediram a saída de todos presidentes até 2002, as novas manifestações eram agora um golpe de estado.
Mas ainda assim, não se iludam, o impeachment é um processo muito mais político do que jurídico, embora precise de uma chama jurídica para incendiá-lo. O baixo clero da Câmara dos Deputados nem sabe o que é uma pedalada fiscal. Quando chegam naquele ponto, os deputados votam com o que acham que trará mais benefícios para eles. E aproveitam os seus poucos segundos de fama para dedicar o seu voto à mulher, aos filhos, aos netos, aos eleitores, ao Brasil. Votam pelos corretores de seguros, pela paz de Jerusalém, pelo Vale Juruá, pelos militares, pelos ferroviários, pela inocência das crianças, pela tia Eurides, pela mãezinha de 93 anos, e por aí vai. A expectativa maior era para ver se o deputado Tiririca, o mais votado do Brasil, dedicaria o seu voto a Crementina de Jesus. Mas o deputado se controlou.
Baseados nas manifestações populares e na abismal popularidade do governo, votariam pela derrubada do governo sabendo ou não se houve crime. É mais ou menos o equivalente ao “voto de confiança” do parlamentarismo, mas sobre isso a gente conversa em outra oportunidade.
Quando o processo chega no Senado então, a briga é de cachorro grande. Um governo já foi afastado, o outro já está funcionando interinamente, a população já se manifestou nas ruas. Ninguém quer mais saber das tecnicalidades, a não ser que possam ser usadas para o benefício próprio das raposas ali presentes. Como a surpreendente artimanha de fatiar o voto do impeachment a fim de evitar que a presidente-de-saída perdesse os seus direitos políticos. Enquanto isso, “tomado pela emoção”, Collor reclamava que havia renunciado, sido inocentado no Supremo e ainda sim havia perdido os seus direitos políticos. Dois pesos e duas medidas. Quase, mas quase mesmo que eu ficava com pena dele…
E assim, o Brasil derrubava o segundo presidente dos quatro que foram eleitos pelo voto direto desde o final da ditadura.
Contando com o governo Sarney, que assumiu o poder após a morte de Tancredo Neves, o PMDB (aquele partido fisiológico que sempre consegue ser parte da base governista, seja quem for o governante) conseguiu a proeza de alçar três membros do partido à presidência sem nunca terem sido eleitos para tal. Pense na zica que é ter um vice-presidente peemedebista!!
Essa página está virada, mas o lamaçal da corrupção continua arrastando o país para o buraco. Novas delações comprometem caciques representando partidos de todas as esferas políticas. Os chamados acordões continuam, como vimos com o julgamento do presidente do Senado no STF. Permanece no cargo mas sai da linha sucessória presidencial. Mais um “fatiamento”, esse sim com cheiro de pizza.
Pelo menos agora o povo sabe o tamanho do rombo, o montante de recursos que são desviados das empresas públicas para os poucos premiados da côrte que estiver no poder no momento. E assim, não há dinheiro para educação, saúde, aposentadoria, etc.
De longe, fico esperando que o gigante entenda que as ideias de direita e de esquerda precisam ser debatidas, sem radicalismos, sem pré-julgamentos. Que a perpetuação no poder de um lado ou de outro não é salutar para a democracia. O velho Raul já nos ensinava a esquecer “aquela velha opinião formada sobre tudo”.
E mais importante ainda: espero que essa geração de políticos que hoje comanda o país seja expulsa pelo voto popular (salvo raríssimas exceções). Que a nova geração de políticos tenha um pouco mais de interesse pelo bem comum (ou pelo menos que tenham mais medo da justiça mesmo). Que pelo menos essa celeuma toda que tomou conta do país abra um caminho para dias melhores. E para um gigante menos enlouquecido. Um gigante que finalmente encontre o seu rumo. Nem pra direita. Nem pra esquerda. Pra frente.