A Primeira Rasteira

Uma coisa que sempre me ajudou a vencer na vida foi aprender a perder. Não foi fácil.

Nunca fui craque de futebol, mas sempre participava das peladas na escola. Às vezes ficava no gol, mas tinha medo de levar uma bolada nos óculos. Quando jogava sem óculos, eu via duas bolas. Tinha medo de pular na bola errada e a bola de verdade entrar no gol bem ao meu lado. Ainda assim, com a altura e uma dose razoável de agilidade, era um goleiro mais ou menos. Quando jogava na linha, não dava dribles desconcertantes, nem fazia jogada de efeito. Como zagueiro, cortava a bola pra longe sem fazer firula. Como atacante, chutava com as duas pernas e de vez em quando pegava o goleiro desprevenido.

Quando meu avô começou a me ensinar xadrez, eu não ganhava uma. Meu irmão ainda fazia uma graça, desbancando Vovô de vez em quando. Eu? Nada. Nem ganhava dele, nem do meu irmão.

Um dia, numa roda de poker em Itamaracá, me invoquei e não queria perder de modo algum. Comecei a blefar além do limite. A gente ainda era um bando de meninote, não estávamos realmente jogando a dinheiro. Mas meu avô, que também estava na roda e sabia que o meu blefe era ridículo, desistiu da mão para que eu não passasse um vexame. Mas não sem dar o recado:

– OK, você ganhou essa, mas se a gente estivesse jogando a dinheiro, teria quebrado a cara.

Enfim, toda vez que eu não conseguia o meu objetivo, seja no futebol, no xadrez ou no baralho, sempre procurei aprender com o fracasso e tentar fazer melhor da próxima vez.

Mas, perder o emprego no Canadá com um ano e pouco de empresa foi uma experiência única.

Williams no ano 2000 - patrocinada pela Nortel. Foto: Reprodução
Williams no ano 2000 – patrocinada pela Nortel. Foto: Reprodução

Quando aceitei a proposta da Nortel, fui porque era uma empresa grande. Na verdade, eu tinha duas propostas na mão: uma da Nortel e outra de uma empresa pequena. Havia recebido as duas propostas basicamente ao mesmo tempo. A Nortel era a queridinha dos canadenses na época. Vivia saindo nos jornais, era inclusive patrocinadora da equipe Williams no mundial de Fórmula 1 de 2000.

Os benefícios eram melhores, o salário mais alto, enfim, a decisão parecia ser muito fácil. Liguei para a outra empresa para agradecer o convite e avisá-los que havia aceitado o convite da Nortel. A resposta:

– Uma pena. Talvez aqui numa empresa menor você pudesse colocar em prática as suas ideias mais facilmente. A gente estava contando que você iria dizer sim. Mas, boa sorte assim mesmo.

Fiquei com aquele gosto amargo depois da conversa com eles, mas ainda convencido que a decisão era a correta.

A bolha da área de tecnologia do início dos anos 2000 atingiou em cheio a Nortel. A empresa tinha contratado muita gente nova (inclusive eu) e esperava um crescimento exponencial de infra-estrutura para a expansão da internet. Ocorreu o oposto. Mal sabia eu (e todo o mercado) que a empresa estava no auge e, dali por diante, tudo iria ladeira abaixo. Com a crise, todo mundo cortou investimentos e a empresa viu a sua receita e o preço de suas ações (que eram a base do fundo de aposentadoria de muita gente, por sinal) despencarem.

Nortel_Ottawa
Prédio principal do Campus da Nortel em Ottawa. Foto: Reprodução – Wikipedia

Com apenas um ano e pouco de empresa, eu já havia sobrevivido a duas ou três rodadas de demissão em massa. Também já havíamos nos mudado do prédio onde fui originalmente contratado para o campus na Carling Avenue. O campus da Carling era formado por vários prédios. O prédio central podia ser visto da highway 417, que dava acesso ao local. Era um prédio redondo e pontudo, apelidado de disco-voador. Quando a Nortel realmente veio abaixo, o governo canadense comprou o campus da Carling Ave, com o objetivo de lá alojar o Departamento de Defesa canadense.

Todos os sinais estavam claros de que o meu dia estava chegando. No entanto, a inexperiência, a inocência e a fé me faziam acreditar que nada aconteceria. Ou parariam com as demissões, ou eu escaparia de novo. Não era possível que ia ser escolhido, né? Tinha certeza! Afinal não era justo para quem tinha passado por tanta dificuldade de cortar o cordão umbilical com a terrinha e esperado 5 meses para arrumar o primeiro no Canadá…

Estava errado.

Num belo dia do outono de 2001, lá estava eu estacionando e testando o meu casaco novo. Estávamos na faixa de 6 graus e eu pensando comigo:

– Hum, acho que esse casaco aguenta até alguns graus abaixo de zero.

Pensamentos mundanos, rotina matinal inalterada, um dia como outro qualquer.

Estávamos terminando um projeto grande e praticamente a equipe toda estava no laboratório de testes. Eu na minha, continuando a execução dos casos de testes que tinha planejado para a semana. Ninguém sabia que uma nova rodada de demissão estava em andamento. Toca o telefone do laboratório. Um colega atende e me chama:

– Fabio, é pra você.

Gelei. Era o meu gerente:

– Fabio, preciso discutir um assunto com você agora.

Disse em que sala de reunião estava e que eu precisava ir pra lá encontrá-lo imediatamente. Era óbvio que a minha vez havia chegado.

Ainda assim, fui me arrastando do laboratório até a sala de reunião pensando:

– Não vai ser nada, não vai ser nada, não pode ser – tentava me consolar e me enganar ao mesmo tempo.

Abri a porta e a última dúvida se dissipou. Estavam na sala apenas ele e uma mulher que eu nunca tinha visto. Obviamente, a representante do departamento de recursos humanos.

Entrei na sala e eles pediram para que eu me sentasse. Antes que dissessem qualquer coisa a mais, fui direto ao assunto:

– Chegou a minha vez, não foi?

Meu gerente balançou a cabeça afirmativamente, com quem diz: “não há nada que eu possa fazer…”

Daí em diante, passaram alguns minutos me explicando como proceder, quanto eu iria receber de indenização, por quanto tempo poderia manter meus benefícios, etc. De lá, fui redirecionado para uma outra sala, bem maior, onde outros integrantes da equipe de RH estavam reunidos com outros colegas que já havia sido notificados pelos seus respectivos gerentes. Entre os recém-demitidos, alguns colegas do meu departamento, incluindo um que tinha 25 anos de serviços prestados à empresa. Vê-lo lá foi quase um conforto, pois percebi que a decisão não estava necessariamente relacionada a tempo de serviço, nem à performance de cada um. A empresa tinha um número de demissões que tinha que ser atingido e não tínhamos como controlar quem seria escolhido.

Algumas horas depois de ter estacionado o carro, lá estava eu de volta com meu casaco novo, que nem havia sido pago ainda… e sem emprego. Não era nem meio-dia. Foi rápido assim. De repente, estava sem nada pra fazer. Entrei no carro e me mandei pra casa. Liguei pra Guida e avisei a ela sobre o que havia acontecido.

Os meses que seguiram aquele outubro de 2001 foram difíceis. Como já havíamos comprado nossas passagens para passar o Natal no Brasil, pelo menos pudemos terminar o ano junto aos nossos familiares.

O baque foi grande, mas saí fortalecido. Minha vida não seria mais a mesma depois do outono de 2001. A partir daquele dia, nunca mais assumi que o que já havia sido conquistado duraria para sempre. Mais uma vez, procurei aprender com as circunstâncias para me sair melhor na próxima oportunidade. Como diz o ditado, foi “um passo pra trás para poder dar dois pra frente”.

Em termos de incertezas quanto a emprego, o ano de 2002 que estava por vir seria o mais difícil aqui no Canadá. Amigos extraordinários nos ajudaram muito durante aquele período.

Mas isso fica pra outro post…

4 respostas para “A Primeira Rasteira”

    1. Pergunta difícil! Sempre quis documentar essa experiência, mas jamais teria feito na época da imigração, no formato de um diário. Também não queria me limitar a comentar notícias do dia-a-dia, pois já existem vários sites assim. Enfim, sobraram as minhas memórias desses 15 anos. 15 é um número redondo, então me pareceu uma boa hora pra começar… 🙂

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